CAPÍTULO 2
— Limitadíssimos, Odilon — acentuei, dando seqüência ao diálogo.
— Confesso-lhe, com toda a sinceridade, que eu imaginava que o Plano Espiritual fosse diferente…
— Diferente, Inácio, é mais para cima… Não nos esqueçamos de que estamos nas circunvizinhanças da Terra. Você sabe que, na Natureza, não existe transição brusca; tudo obedece a um encadeamento lógico, baseado na Lei do Mérito…
Como, por exemplo, adquirir asas nos ombros, se ainda mal sabemos o que fazer com as pernas?
— Mas — redargüiu o valoroso companheiro —, os espíritas haverão de se decepcionar; eu não sei a causa de, ao nos tornarmos espíritas, passarmos a achar que somos privilegiados…
A Doutrina nos torna conscientes de nossas enfermidades, porém a tarefa da cura nos pertence, pois a simples condição de adepto do Espiritismo não isenta ninguém de suas provas…
— É, principalmente, do esforço de renovação… O espírita sincero é aquele que não recua diante das lutas que trava para ser melhor. Deus não cultiva preferencias…
As orações dos fiéis de todas as crenças têm para Ele o mesmo valor; às vezes, quem ora aos pés de um santo de barro ora com maior fervor do que aquele que já libertou a fé de tantas formalidades…
— Como você mudou, Inácio! — brincou Odilon comigo.
— Eu diria tratar-se de um espírito… Se eu não fizer esta ressalva, os nossos irmãos do mundo não acreditarão que eu esteja conversando com você, o ferrenho adversário da Igreja Católica…
— Ora, não exagere! Você sabe que eu apenas me defendia, ou melhor, procurava defender a Doutrina… Agora, no entanto, estou aqui, às voltas com a própria realidade…
— E com muito trabalho neste hospital, não é?
— Neste hospital onde, por incrível que pareça, a maioria dos pacientes é espírita… Eu preferiria lidar com um louco espírito do que com um espírita louco… Como somos, Odilon, vaidosos do nosso pequeno saber! — Muitos médiuns internados aqui? .— O problema maior não são os médiuns que, na maioria das vezes, faliram por falta de discernimento; o problema maior são os dirigentes espíritas, aqueles que quiseram ter as rédeas do Movimento nas mãos e impunham os seus pontos de vista. Já os médiuns se assemelham aos pecadores do Evangelho, mas os dirigentes são os doutores da lei…
— Algum católico ou evangélico por aqui? — Poucos. E são os que me dão menos trabalho…
Conforme lhe disse, os espíritas é que estão mal arrumados: conversam comigo de igual para igual e, não raro, acabam invertendo de papel comigo, ou seja: tratam-me como se o doente fosse eu…
Citam trechos de “O Livro dos Espíritos”, referem-se ao Espiritismo científico, fazem questão de demonstrar conhecimentos, no entanto já pude fazer entre eles curiosa constatação: quase todos foram espíritas teóricos; nunca arregaçaram as mangas numa atividade assistencial que, ao contrário, criticavam veladamente…
Conheci alguns deles, quando ainda no mundo — aparteou o devotado amigo.
— Um aos quais eu me refiro chegou a combater com veemência o nosso trabalho de Sopa Fraterna na “Casa do Cinza”, em Uberaba; disse-me que o Espiritismo tinha que parar com aquilo, que nós estávamos desvirtuando tudo
— o povo precisava de luz, não de pão…
— Por acaso — indaguei
—, teria sido o
— Ele mesmo, Inácio — respondeu. Sempre que me via no Mercado Municipal pedindo verduras e legumes para a nossa Sopa, eu tinha que ouvir um sermão… Coitado!…
Nem sei se já desencarnou. — Ele é um dos meus pacientes aqui, Odilon, e, por sinal, é um dos que mais reivindicam…
— O R., internado neste hospital?… – E deveria dar graças a Deus, pois, a rigor, o seu lugar seria mais embaixo…
Não sei como foi que conseguiu chegar até aqui. Ele cuidava da mãe, que morava sozinha, e não deixava que nada lhe faltasse… De fato, eu não sei o que seria dos filhos, se não fossem as mães — comentei, emocionado.
— Não fosse por elas, as regiões trevosas estariam regurgitando…
— Mas, Odilon — falei, com a intenção de mudar de assunto. E o seu trabalho com os médiuns junto à Crosta, como é que tem se desenrolado?
– Estamos indo, Inácio. Como você não desconhece, os progressos são lentos
— tão lentos, que, por vezes, nos parecem inexistentes, mas vamos caminhando. A turma não quer estudar e assumir a tarefa com disciplina. Muitos começam e quase todos desistem…
– Querem colher antes de semear, não é?
– E semear antes de preparar o terreno…
– Não é mesmo fácil perseverar, ainda mais no mundo de hoje, que mete medo em qualquer candidato à reencarnação…
– Porém não existe alternativa; se você deseja escalar a montanha, não adianta ficar rodeando-a, concorda?…
E nem esperar, indefinidamente, melhor tempo para fazê-lo…
Creio, Odilon, que talvez este tenha sido o nosso mérito, se é que algum mérito tivemos: embora conscientes de nossas imperfeições e mazelas, ousávamos fazer o que era preciso.
— Os médiuns, Inácio, acham que mediunidade corre por conta dos espíritos; quase nenhum quer ser parceiro ou sócio e entrar com a parte que lhe compete…
Fazem uma série de alegações, quase todas sofismas, para justificar a sua falta de empenho e melhor adequação da instrumentalidade.
– O velho “fantasma” da dúvida…
– Dúvida que, conforme sabemos, persistirá em cada um, até que seja definitivamente afastada pela sua lucidez espiritual; é a dúvida que desafia o homem a caminhar…
A certeza é o ponto final de jornada empreendida.
— Se o Espiritismo pudesse contar com médiuns mais conscientes…
— lamentei.
— Seria uma maravilha, mas estamos confiantes para o futuro…
Tudo está certo. Será, por outro lado, que se tivéssemos sobre a Terra um número maior de medianeiros convictos e responsáveis, o excesso de luz, ao invés de lhes facilitar a visão da Verdade, não induziria os homens à cegueira?
Sempre me intrigou o fato de Jesus ensinar por parábolas; por que o Mestre não falava claramente?… Quero crer que não era por falta de capacidade pedagógica ou por pobreza de vocabulário…
Ele tencionava nos induzir à procura, exercitando a nossa capacidade interpretativa. A Humanidade não se redimirá coletivamente; a porta é estreita exatamente para conceder passagem a um de cada vez…
— Você, como sempre, tem razão, Odilon — concordei com a linha de raciocínio do companheiro.
— É possível que Moisés, se tornasse a viver hoje sobre a Terra, viesse a reeditar a sua proibição dos homens se contactarem com os mortos; queremos mais, no entanto não estamos tão preparados assim… — Aqui mesmo, Inácio, onde presentemente nos situamos deste Outro Lado da Vida, não estamos preparados para saber o que existe acima de nossas cabeças…
— Você tocou num assunto que tem me preocupado. É verdade, Odilon, que existem Dimensões Espirituais paralelas, ou seja: além daquelas que naturalmente se posicionam em níveis concêntricos, outras que, por exemplo, coexistem com a nossa, num Universo Espiritual Paralelo?
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