O diálogo prosseguia interessante e me despertava a curiosidade, ante as
abordagens efetuadas por Odilon, o companheiro que, por assim dizer, se
especializara no serviço do intercâmbio com os homens, trabalhando
exaustivamente pela fé espírita. Nosso irmão não poupava esforços no sentido de
divulgar a crença na imortalidade e entendia que os médiuns eram chamados a
cumprir relevante papel, no combate ao materialismo.
— Dr. Inácio — indagou-me Paulino —, além de médico na Terra, o senhor
exercia a mediunidade?
— Na acepção da palavra, não — respondi —, mas em seu significado
profundo, sim. Hoje percebo que convivia com os espíritos freqüentemente e, de
maneira inconsciente, conversava com eles o tempo todo. Além do contato que
me era possível manter, ostensivamente, com o Mundo Espiritual, através da
faculdade mediúnica de Maria Modesto Cravo, a nossa Modesta, os doentes com
os quais lidava no Sanatório eram intérpretes em potencial dos desencarnados —
para mim, às vezes era difícil saber com quem estava verdadeiramente
conversando, se com o obsidiado ou se com o obsessor. Em minha casa, quando
me encontrava à sós, entregue às minhas reflexões, procurando inspiração para
os meus escritos, embora não pudesse identificá-las, devido, digamos, ao meu
couro grosso, eu registrava a benéfica presença de diversas entidades que me
rodeavam…
Os espíritos sempre andaram comigo e, se assim não tivesse sido, é possível que
eu não tivesse levado até ao fim a árdua tarefa que fui chamado a desempenhar;
os ataques, as perseguições e as tramas urdidas contra as nossas atividades
eram muito grandes. Por mais de uma vez, segundo pude constatar
posteriormente, a minha morte chegou a ser cogitada pelos adversários da
Doutrina… De modo que, médium, ao meu ver, não é só aquele que se encontra
no exercício mais ou menos ostensivo de suas faculdades. Concorda, Odilon?
— Claro, Inácio — respondeu sem evasivas o Orientador—, aliás, em matéria de
mediunidade, a sintonia natural é aquela que se deseja, sem que o médium tenha,
necessariamente, de “perder” a lucidez; o transe mediúnico pode ocorrer de
maneira quase imperceptível, sem necessidade de que o médium sofra alterações
físicas de vulto, evidenciando o fenômeno…
Músicos, escritores, atores no ato de representar, pintores, enfim, todos aqueles
que, principalmente, procuram o cultivo de sensibilidade, são médiuns em
potencial, porqüanto, estejam no corpo ou fora dele, os que têm aspirações em
comum se atraem; em mediunidade, também é válido o aforisma de que
“semelhante atrai semelhante”…
Aparteando, Paulino questionou-me:
— Diante do exposto, o senhor não acha, Dr. Odilon, muito dificil que as
inteligências que se opõem à emancipação espiritual encarnada colimem os seus
objetivos, no que tange ao bloqueio das comunicações?
– Sem dúvida, Paulino — esclareceu o interpelado —, no entanto há de se fazer
uma ressalva. Presentemente, a mediunidade que constrói os valores do espírito e
enfatiza as lições do Evangelho é a de que o Espiritismo nos ensina o cultivo. Na
Doutrina, temos um movimento organizado e inteligente das Falanges Superiores
que, em nome do Cristo, objetivam o despertar da criatura encarnada; a
mediunidade não vale só por si, pois, neste sentido, desde épocas imemoriais, os
homens têm se colocado em contato com os habitantes do Invisível… Através dos
canais espíritas, estabelecidos por Allan Kardec, sob as diretrizes do Espírito
Verdade, éque a mediunidade passou a servir à edificação espiritual da
Humanidade como um todo; antes que o Espiritismo estabelecesse determinados
parâmetros para o intercâmbio dos vivos com os mortos, a mediunidade não
passava de mero instrumento de curiosidade que se vulgariza… E isto, Paulino,
que incomoda os espíritos que não desejam se expor às Leis que regem os
princípios da evolução para o mundo íntimo; na verdade, os espíritos que pelejam
contra a Doutrina estão defendendo a própria posição, de vez que não querem se
submeter à Reencarnação e ao Carma, como se lhes fosse possível escapar,
indefinidamente, das Leis que o Criador instituiu para todas as criaturas..
– Eu ainda não havia pensado nisto… — comentou, reticente, o jovem amigo.
– O Espiritismo — continuou Odilon — representa, na atualidade, o Cristianismo
puro; à medida em que um maior número adere a ele, os espíritos recalcitrantes
vão se sentindo forçados a se afastar da psicosfera do Planeta e, através desse
distanciamento, caem nas malhas gravitacionais de outros orbes ou de outras
dimensões extra-físicas, tornando-se então realidade para eles o chamado
“expurgo planetário”; sem receptividade mental, os espíritos afeitos às sombras
não sustentarão a sua necessidade de escuridão, ou seja: iluminando a mente
humana, o Espiritismo desfaz a sintonia que as trevas mantêm com o seu
hospedeiro, que é o médium não-consciente de suas responsabilidades e deveres.
— Então — questionou Manoel Roberto, tão impressionado quanto eu com
o que ouvíamos —, deveremos esperar ataques sempre mais acirrados contra as
trincheiras do Movimento?…
É evidente, Manoel — esclareceu o devotado amigo —; os espíritos indiferentes
aos propósitos do Senhor farão de tudo para desestabilizar o Movimento e
comprometer a Doutrina…
E qual o seu alvo de eleição? Preferencialmente os médiuns, que são os espíritas
de uma vida mais pública e estão sob a mira das lentes da opinião pública; além
de tentar envolvê-los moralmente em delicadas situações, ocasionando
escândalos para o enfraquecimento da fé, haverão de tentar manipular-lhes a
vaidade e o personalismo, sabedores de que os médiuns nada mais são do que
seres humanos que, por vezes, parecem se esquecer dessa sua condição.
— E por que, Dr. Odilon — tornou Paulíno a interrogar —, o Plano Espiritual
não desce à Terra de vez?…
— Compreendo, Paulino, o alcance de sua colocação, mas não podemos nos
esquecer de que, pelo menos duas vezes, no sentido coletivo semelhante medida
já foi tomada — a primeira, quando da festa de Pentecostes, em que, de acordo
com as narrativas, “todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em
certas línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem” e cerca de três mil
pessoas se converteram de uma só vez; a segunda, quando do chamado
fenômeno das “mesas girantes”, que antecederam a Codificação… Se a terra não
está preparada, é inútil lançar-se-lhe a semente. Reparemos na cura efetuada por
Jesus em dez leprosos, de uma só vez: apenas um deles, após ter se mostrado ao
sacerdote, voltou para agradecer — agradeceu, mas o Evangelho não diz que ele
tenha se tornado adepto…
— O mesmo acontecia no Sanatório — acrescentei com conhecimento de
causa.
Raríssimos daqueles que se tratavam conosco e alcançavam a graça da cura de
suas obsessões, admitiam, depois, o beneficio que o Espiritismo lhes havia
prestado; no caso dos dez leprosos, o reconhecimento foi de um décimo, mas dos
internos do Sanatório a percentagem era quase inexpressiva: a maioria, inclusive,
chegava a esconder que estivera sob tratamento num hospital espírita; as famílias
mais abastadas e, conseqüentemente, mais preconceituosas, quando iam levar
um doente para ser internado chegavam a nos fornecer dele uma identidade
falsa… A Humanidade sempre foi hipócrita! — sentenciei com um muxoxo.
Sorrindo do meu jeito de ser, Odilon observou:
— Inácio, meu bom amigo, a Humanidade somos nós!…
— Infelizmente — concluí, convidando Odilon e Paulino para que nos
acompanhassem, a mim e a Manoel Roberto, na visita inadiável que
necessitávamos de fazer a um dos nossos pacientes que estava em crise.
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